segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A anatomia de um desastre

por Tailor Diniz, Revista Aplauso, número 96
Altair Martins é daquela estirpe de escritores que publicam pouco, mas que, quando lançam um novo livro, não passam despercebidos. Depois da estréia com o excelente Como se moesse ferro (1999), publicou mais dois livros apenas: dentro do olho dentro (2001) e Se choverem pássaros, (2003). Agora, depois de um longo período sem publicar, nos apresenta seu primeiro romance, A parede no escuro, no qual pode-se perceber, já nas primeiras páginas, a presença de um casamento raro na ficção brasileira: um enredo envolvente e bem talhado com uma linguagem vigorosa, que, embora forjada com esmero, flui ao natural, sem malabarismos ou invenções desnecessárias.
São inúmeras as virtudes de A parede no escuro. A inquietação em busca de uma estética própria (não confundir com a simples necessidade de ser diferente ou pós-isso, pós-aquilo) deve ser considerada não apenas neste lançamento, mas na obra inteira de Martins. Uma das boas novidades nesta sua estréia como romancista é que nas 253 páginas do livro nada sobra – e o produto final é um universo denso, arquitetado apenas com elementos essenciais, onde tudo se ajusta e se harmoniza. Acrescente-se a isso um ritmo quase alucinante no avançar da história, algo incomum entre aqueles autores mais esmerados com a forma e com a linguagem. O enredo montado com as vidas do padeiro Adorno, de sua filha Maria do Céu, do professor Emanuel, do seu Fojo, de dona Onira, da estudante Lisla, desenrola-se com tensão e suspense semelhantes aos de uma novela policial, cheio de imbricações, de laços que se soltam e se amarram logo a seguir.
O autor optou por vários focos narrativos, com uma intercalação quase infinita de falas na primeira pessoa do singular. A naturalidade com a qual se serve de todas essas vozes, de forma que o leitor às vezes nem perceba a mudança de foco, deixa a sensação de algo impossível tanto na literatura quanto cinema: a simultaneidade narrativa de eventos paralelos. Em algumas ocasiões, tem-se a impressão de que a história é contada num plano-seqüência, no qual todos os fatos, simultâneos ou não, são relatados sem cortes, na forma e na ordem em que ocorrem. Essa virtude é nítida, em especial, enquanto o autor prepara o terreno para o momento crucial da obra, de ruptura da normalidade, quando tudo se desarranja, a partir do atropelamento da personagem principal. Até esse estágio, as ações mínimas da vivência do padeiro Adorno são expostas em detalhes, passo a passo e sem maquiagem, como a anatomia de um corpo na mesa cirúrgica.
Completando o círculo, lado a lado com um enredo que gruda no leitor e uma linguagem adequada à personalidade de cada personagem, está a consciência psicológica, social e política do autor. Entre outras abordagens precisas na área social, além de relações cotidianas de simples habitantes de uma pequena cidade interiorana, Martins toca num ponto nevrálgico na área da educação no Brasil. Escancara as relações professor/aluno de um colégio particular de classe média alta, na qual professores são reféns de alunos arrogantes/ignorantes e de pais do mesmo nível intelectual. Pais que se sentem no direito de não admitir a reprovação de seus filhos pelo simples fato de estarem pagando uma alta mensalidade no colégio: “Não gritam em casa e mandam os filhos pra cá. Porque são acionistas da escola, todo o mundo sabe disso. estão pagando, não dizem? Se a gente fizesse um só bimestre a sério, um aluno lá que outro passava. Mas onde está o poder de reprovar um aluno?”
O bom em A parede no escuro é poder falar que, seja qual for o ponto de vista de análise, se verá nele uma grande obra. Altair Martins faz jus à expectativa que se tinha sobre sua futura escrita depois do reverenciado Como se moesse ferro. Não é temeroso afirmar que esta estréia como romancista faz dele um dos mais qualificados escritores contemporâneos e, de seu livro, um dos melhores publicados no Brasil, em 2008.