domingo, 30 de novembro de 2008

Literatura e desastre

O Globo / Data: 27/9/2008 / Literatura e desastre
José Castello
Avanço na leitura de
A parede no escuro (Record), primeiro romance do gaúcho Altair Martins, e uma analogia me persegue. Não, não é uma dessas semelhanças fáceis, metáforas de algibeira, que nos levam a pensar que um garçom é um pingüim, ou um juiz, um corvo. Ao contrário, a imagem me desgosta, reluto em aceitá-la — mas ela insiste.
Tenho um grande amigo, doutor em Letras, que considero um mestre. Outro dia, ele me aconselhou: “Sou um leitor entusiasmado de seus textos. Mas, às vezes, você é pessoal demais, e isso o expõe. Proteja-se”. Tentei lhe explicar que não sou eu quem me exponho, são as leituras que me expõem. Não é um ato, é um efeito.
E aqui estou eu, de novo, atropelado por um livro. Um romance engenhoso, que confirma as qualidades apresentadas por Altair Martins em “Como se moesse ferro”, seu livro de contos. Volto à analogia. “A parede no escuro” conta a história da morte do padeiro Adorno — e o nome, evocando o pensador de Frankfurt, arrasta novas semelhanças, de que prefiro me desviar. Numa manhã chuvosa, quando desembarca de sua kombi para levar duas cestas de pães para a padaria, Adorno, em meio à paisagem embaçada do alvorecer, é atropelado e morre.
Não há problema em nomear aqui o assassino, Emanuel. Pois é justamente dessa revelação imediata do nome, de que os outros personagens, porém, são excluídos, que o livro tira sua força. Desde logo, ficamos sabendo que Emanuel, por descuido, por atordoamento, por acaso, matou Adorno. Sim: nós que estamos de fora, que somos apenas leitores, sabemos disso. Presos nas malhas da trama, os outros personagens ignoram.
A situação de Emanuel — eis a analogia infernal — reproduz o destino do escritor. Encena-o. Basta observar a capa de “A parede do escuro”. Lá está a assinatura que a designa: Altair Martins. Não é preciso ler o livro (não é preciso assistir ao atropelamento) para saber que Martins (que Emanuel) é o autor do livro (do crime). A pergunta que resta é simples, mas incômoda. Será que Martins (que Emanuel) sabe realmente disso? Será que os dois sustentam seus atos?
É claro que sim, me dirão os adoradores dos fatos. Não, não preciso evocar Nelson Rodrigues, melhor deixá-lo quieto! Vamos lá: não estará Altair Martins na mesma posição de Emanuel, que sabe que atropelou Adorno, mas não se reconhece em seu ato? Sim, em meio à chuva, à visibilidade precária, à pressa para chegar à casa do pai — Fojo, um doente grave a quem deveria acompanhar ao médico — na correria, talvez ainda cheio de sono depois de uma noite de amor, atordoado, exausto, o professor Emanuel sabe que lançou o carro (um carro branco, como seu pai conseguiu ver de longe) contra um corpo. Em seguida, ele mesmo desceu do automóvel para verificar o mal que tinha feito. Fojo, o pai, só viu o carro (o veículo, o meio, o transporte) — não viu a Coisa (o acidente). Mas será que, Emanuel, só porque examinou o corpo inerte de Adorno, sabe o que fez?
Não posso deixar de pensar que também a literatura é uma espécie de desastre. Algo repentino, radical, que acontece em um momento de descontrole, ou de susto. Também quando escrevemos um livro, alguma coisa nos atropela — porque, ali onde o Eu deveria estar, dono de si e sua obra, um Outro chega e se impõe. Também o autor é deslocado, empurrado, atropelado. Também ele é destituído de sua autoridade, e esse ato de deposição inclui certa violência. Depois, pronto o livro, o autor percebe que desconhece o que fez. Sabe que o livro não corresponde, exatamente, ao que desejou escrever. Que ele, de certa forma, não lhe pertence. E, nesse caso, em vez de possuí-lo (e isso apesar da ilusão da autoria, que resplandece nas assinaturas), é o livro quem o possui.
Vem-me à mente, aqui, uma história do poeta Manoel de Barros — que só pela ausência de um “e” não se chama Emanoel. Os pais do pequeno Manoel sabiam que tinham um filho “torto”. A mãe, Alice, lutava para endireitá-lo. O pai, João, o defendia: “Deixa o Nequinho, Alice, ele tem um negócio importante, que ele não sabe explicar para nós e nem para ele mesmo, mas deve ser um negócio importante”. Manoel rememorou a história, ainda nos anos 80, em uma entrevista a Giovanni Ricciardi. Depois de descrever a aflição da mãe, o poeta acrescenta: “Meu pai e minha mãe morreram sem saber que negócio era aquele. Eu também até hoje não sei”.
Pronto, aí está: o desastre. A literatura, diz o poeta, não é algo que ele faz, mas algo que o atropela. Se faz, é “por acidente”. O que “entortava” o jovem Manoel? Que “negócio importante” é esse que, até hoje, o leva a se trancar, sozinho, em seu escritório? É a literatura, que nenhuma relação guarda com a retórica (a arte de quem sabe o que diz), e menos ainda com a autoria (a arte de quem sabe o que fez). A literatura é um instrumento de conhecimento tão potente quanto a ciência, ou a filosofia. Mas não se parece com nenhum deles. Pois é ainda mais autônomo — chega a ser uma espécie de tormenta. Condenação que o romancista Autran Dourado, certa vez, assim descreveu: “A gente começa a escrever porque tem jeito para escrever e depois continua porque não tem jeito de parar”.
Todo o romance de Altair Martins é o relato de como Emanuel sofre as conseqüências da morte do padeiro Adorno. Na primeira visita à mãe, ele pensa: “Por enquanto me sinto só, apenas”. Ato de ruptura, a literatura — como o desastre de Emanuel — separa seu autor do mundo e desloca as coisas de seu lugar. A claridade (a certeza) só engana, pensa Maria do Céu, filha de Adorno. É como um pé de vento. “Tem muita coisa solta nessa vida” pensa Fojo, o pai de Emanuel.
São muitos os que reivindicam a autoria do atropelamento. “Fui eu que matei meu pai”, pensa Maria do Céu, a filha rebelde do padeiro. Diante de seu ato, o próprio autor, contudo, se desconhece: “Sou um novo, o mundo começou hoje de manhã”. Na literatura, o real se revira e as verdades se desarticulam. Perplexo diante da escrita e com a vergonha de um falsificador, o autor até assina. Mas jamais saberá se aquilo é, de fato, seu.

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